ACOMPANHANDO OS MOVIMENTOS SOCIAIS:
Cristina Daniels e Rafael Beverari
Fonte: http://www.passapalavra.info/2015/07/105177
03 JULHO 2015 (BR-SP) Carta de desligamento do MPL-SP
3 de julho de 2015
Nossa carta de desligamento do Movimento Passe Livre, pelas razões que se seguem:
Um movimento que se propõe ampliar suas
bases se depara, cedo ou tarde, com determinados conflitos de ideias
entre seus militantes. O que, num primeiro momento, deveria ser algo
benéfico ao sustentar a multiplicidade de experiências em torno da luta
de classes, pode se tornar um empecilho às práticas que demandam os
conflitos sociais. É daí que surgem os principais problemas que impedem o
real avanço das capacidades organizativas dos movimentos, tornando-os
facilmente suscetíveis a um processo de burocratização constituído pelo
avanço de grupos de afinidades que não pretendem perder seus postos de
controle. Pois é nesta encruzilhada que o Movimento Passe Livre São
Paulo se encontra.
A divisão em comissões não deveria
servir somente como base de aprofundamento de um trabalho em
determinadas regiões. Pouca coisa valeria se esses espaços não
possuíssem autonomia para deliberarem suas ações. Ao decidirem sobre os
próprios rumos da luta através da consolidação nos espaços, militantes
que estão no enfrentamento direto do cotidiano de um trabalho de médio a
longo prazo teriam subsídios para formações concretas que debatessem as
especificidades das lutas pelo transporte em cada lugar. Não é novidade
alguma saber que a aproximação de indivíduos ao movimento também traz
consigo certo tipo de desconfiança. Porém, determinadas pessoas
acreditam que essa falta de “confiança” atua mais como uma barreira ao
fortalecimento coletivo do que algo propositivo às lutas. Antes que
expandir a área de atuação do movimento, procura-se sua atrofia por meio
de um discurso demagógico onde o longínquo campo da luta se esvai nas
pequenas reuniões com indivíduos “confiáveis”.
A arapuca está montada. A reunião dessas
pessoas que não buscam a ampliação do movimento além dos seus limites
de “confiança” acaba por minar a diversidade a que se propõe um
movimento que pense além dos limites de uma tática que envolva uma
revolta popular. No fundo, para esse grupo específico, quando as bases
ganham voz, a torre começa a desmoronar e suas hegemonias são colocadas
em xeque.
Não se trata de um esforço para ampliar o
diálogo entre as diversas comissões. Antes, o dispêndio de determinados
indivíduos é de calar esses espaços de formação que se consolidam em
diferentes locais da cidade. O que poderia se tornar um amplo ambiente
de debate se configura em um espaço de coerção social.
Se a guinada do mpl-sp após junho de
2013 foi focar no trabalho de base associado às comissões locais, isto
não é uma novidade dentro deste movimento. Vale lembrar, nos idos de
2004 e 2005, quando o movimento se constituía enquanto tal nesta cidade.
A partir do momento em que os trabalhos realizados prioritariamente nas
escolas foi deixado como segundo plano, não se tratava somente de
ampliar o reconhecimento de uma organização que até então possuía pouca
visibilidade. Antes, todo cuidado era necessário frente aos estudantes
secundaristas que se aproximavam cada vez mais. Lógico que este não foi o
único fato que fez o mpl-sp tomar tal decisão, mas essa postura teve um
peso grande para o afastamento de muitos jovens militantes que buscavam
questionar as pretensões do que se constituía um movimento pautado na
estreita relação da “confiança” de poucos.
Voltando para 2015, o assunto em debate
que remete ao grupo de afinidades é o gênero. Tema importante na
discussão sobre algo que assola dentro e fora dos movimentos sociais, o
punitivismo traçado pelas pessoas confiáveis do movimento não se
restringe à exclusão de determinados militantes. A confusão entre o
pessoal e o político presente na forma do trashing reflete-se na maneira
como alguns homens e mulheres atuam. E este trashing costuma se dar,
antes que na exclusão, no pavor da exclusão. É neste cenário de pavor e
medo que as relações se centralizam num círculo vazio fundado por
relações de afinidade que não mais visam a constituição de um movimento
que defende a concepção de uma vida sem catracas.
Do ponto de vista dos últimos acontecimentos:
Ficou clara, na última reunião, a forma
arbitrária que está se impondo à atual tentativa de reestruturação do
Movimento a partir de sua divisão em comissões e de um trabalho
concretamente enraizado desde os bairros da periferia da cidade.
Sobrepondo-se a este segundo processo, o coletivo de mulheres arrogou-se
um papel decisivo na organização do Movimento a partir de uma concepção
inquestionável de feminismo. A divergência, a apresentação da luta pelo
reconhecimento da autonomia feminina sob uma perspectiva diferente, a
partir de correntes teóricas diferentes, foi tachada automaticamente de
machismo. Os dois autores desta carta, e outro companheiro de muitas
lutas conjuntas dentro do Movimento, bem como um informativo intimamente
associado à luta por uma vida sem catracas, foram submetidos a um
processo que só se pode dizer inquisitorial e instados a “abjurar” suas
posições, os termos não podem ser outros – que dizer de ser intimado a
mudar instantaneamente princípios de luta que só se pode esperar que
sejam fruto de reflexões amadurecidas ao longo do tempo? O alvo da
polêmica, como se sabe, se concentrou na publicação, por meio do site
passapalavra, da resposta de um até então militante que foi alvo de
denúncia de agressão a uma também militante por parte de um coletivo
feminista. Publicação esta que foi acompanhada de nota crítica sobre a
prática punitivista. Em termos básicos, simplesmente se rechaçou
violentamente a interpretação dessa publicação como instrumento de
oposição a uma concepção de feminismo excludente e se fez tábula rasa de
todas as posições anticapitalistas coerentes e convergentes na luta
dentro ou ao lado do Movimento daqueles que a defendiam, a saber, junto
com estes dois autores, o outro companheiro do Movimento, e o próprio
site. Quanto a este último, acrescente-se que, ainda que se pudesse
acusá-lo, como ocorreu na reunião, de “entrismo”, isso não mudaria em
nada o fato de que estamos no campo das divergências e nada justifica o
ataque arbitrário para demolir uma pretensa influência externa de
ideias. A autoimposição da tese do feminismo, em detrimento de outra
tese igualmente defensora do feminismo, no mínimo, pedia um
esclarecimento sobre as origens ideologicamente afinadas com uma
política estadunidense no correr da segunda metade do séc. XX, que via
no multiculturalismo o oportuno estímulo à contemporização dos
“civilizados” cidadãos americanos com a “barbárie” estrangeira que
imigrava trazendo mão de obra precarizada. Essa afirmação das múltiplas
culturas que, pretensamante estariam “em pé de igualdade” é a base do
culturalismo identitário sobre o qual se sustenta a tese da
“autoevidência” da vítima e do agressor na opressão de gêneros (desde
quando a esquerda se vale desse conceito espúrio com que o positivismo
serve à direita? Na autoevidência da superioridade física e moral se
sustentou justamente a primazia de um gênero sobre outro, de uma raça
sobre outra; da necessidade de uns fazerem o trabalho manual e outros o
intelectual). Em suma, trata-se de uma disputa de posições ideológicas
cujos pressupostos, o alinhamento histórico e político, a filiação
teórica são pouco conhecidos, permanecendo-se na superfície de
princípios atraentes e fáceis como o poder masculino e a sujeição
feminina; a exclusividade da condição do oprimido; o privilégio da
cultura; a importância da identidade; a precedência do patriarcado e
outros que, por si só, podem levar a qualquer lugar, reacionário ou
transformador, e que só podem ser efetivamente julgados quando se
conhece os pilares em que se sustentam e quem são os seu aliados. Isto
é, devem ser inseridos em um processo que estamos cansados de saber que é
importantíssimo, o processo histórico, por meio do qual chegamos à sua
origem e ao desenvolvimento que os trouxe até nós.
É nítido que a forma como a tese desse
tipo específico de feminismo se impõe à custa da suspensão de uma
discussão vital para o Movimento, como é a reestruturação a partir das
comissões e o trabalho de base, reflete a inclinação do grupo que a
defende a um exercício concentrador de poder no Movimento. É oportuno
mencionar a experiência da co-autora desta carta, pela profunda
convergência com o atual processo centralizador, em 2013, quando se
aproximou do MPL, atendendo à convocação para integrar a luta por
transporte durante as jornadas de junho. Operou-se então a prática entre
nós conhecida como trashing. Participando da organização de seminário
articulado pelo MPL em conjunto com a Ocupação Margarida Alves, à certa
altura, a companheira viu-se inexplicavelmente hostilizada e
gradativamente excluída de forma mais ou menos ambígua das tarefas,
alijada das discussões por uma mais ou menos discreta desqualificação de
suas posições, até que, por fim, sua exclusão nas reuniões e seu
consequente constrangimento tornaram-se patentes e quase insuportáveis. À
tentativa de ventilar aquela situação, acenou-se com uma reunião de
avaliação pós-evento que, entretanto, nunca se realizou ou para a qual
ela, pelo menos, nunca foi convidada – nenhum contato mais foi feito, a
despeito de continuar participando, por conta própria, das mobilizações
do MPL. Enfim, para arrematar, no dia da realização do seminário, seu
comparecimento foi antes fruto da teimosia e da convicção diante de um
grupo que decididamente parecia esperar que ela não fosse. Assim
terminou a primeira tentativa de militância no MPL, permanecendo até o
início deste ano o apoio e acompanhamento sistemático fundado numa
confiança no Movimento acima de conflitos contingentes com militantes.
Nossos últimos acontecimentos vieram mostrar que não se tratava de um
incidente subjetivo nem externo, mas de uma tática de salvaguarda do
poder em conformidade com uma orientação disputada no Movimento.
O apoio a uma concepção reacionária de
feminismo converge com o processo de centralização e burocratização do
MPL ao qual se buscava resistir através da reestruturação do Movimento,
da permeabilidade a influências de novos integrantes surgidos a partir
da expansão do trabalho de base e da coesão da organização a partir de
mediações sociais concretas. Os autores desta carta fazem coro com os
companheiros que defendem essas medidas. Ao contrário dessa inclinação a
posições consistentes e horizontais, a sustentação obscurantista da
tendência atual se reflete no apelo ao sentimentalismo que carrega um
forte poder de atração, próprio da sociedade capitalista altamente
recalcada, largamente utilizado pela propaganda de massas e, de maneira
muito típica, pela extrema direita. Da mesma maneira, fomenta convicções
contraditórias com a luta emancipatória porque autoritárias, tais como
as declarações de militantes pedindo a própria punição caso se comportem
de modo machista, ou que afirmam que é justo sentirem-se constrangidos
perante o Movimento já que, afinal, são mesmo machistas e devem ser
vigiados. Sabemos muito bem que a verdadeira consciência é fruto da
liberdade, da autonomia; e isso, antes de mais nada, porque pedir para
ser controlado ou ser castigado é pretender usar a própria autonomia
para negá-la, o que é simplesmente um contrassenso; dessa maneira, a
declaração dos companheiros se torna perfeitamente nula. Evidentemente, o
Movimento precisa de indivíduos capazes de refletir autonomamente, não
constrangidos e obedientes a uma autoridade ou tutela superior acima de
qualquer crítica, que nenhum princípio libertário jamais pôde sancionar.
As catracas não existem só no mundo material, é preciso queimá-las também no plano das ideias!
Fonte: http://www.passapalavra.info/2015/07/105177
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